terça-feira, dezembro 29, 2009

Protecção de leite

D - Quando estamos a adormecer gosto de meter o braço assim em cima de ti.
P - E porquê meu amor?
D - Porque assim fico mais quentinho… e tomo conta de ti.

Sorrio e aconchego-o contra o meu peito. Abraço-o no gesto de protecção que sei mais dar do que receber. Sinto-lhe a respiração, os pés entrelaçados nas minhas pernas e invade-me a maior das ternuras. Tantas vezes quis que alguém tomasse conta de mim. Que me dissesse: não te preocupes, eu estou aqui. Já algumas pessoas o tentaram. Poucas o conseguiram. Mas o Diogo, com oito anos, hoje conseguiu. Na forma mais genuína de todas… com o coração.

domingo, dezembro 27, 2009

Flã de liberdade

Ainda está mole. Mas de cada vez que olho para o mapa mundo, como fiz hoje, percebo que em breve ficará duro. Como os meus olhos que deixaram de querer ver só ao perto. Como o meu coração, cuja porta é sim um portão de ferro desejoso de um dia conseguir verdadeiramente abrir. Volto a querer ver gentes e cores, saborear desejos e sabores, ouvir histórias simples de pessoas de longe, mas tão iguais a mim e ti. Quero sentir. Quero fechar os olhos e achar que estou a voar. Quero inspirar e cheirar um ar que não é o meu. O de todos. E na maior das humildades, ter o mundo à mercê dos meus pés. Percorrer metros, quilometros. Sorrir e chorar. Estar lá e voltar. Rumo ao infinito da minha cozinha.

"Venho da terra assombrada
do ventre de minha mãe
não pretendo roubar nada
nem fazer mal a ninguém

Só quero o que me é devido
por me trazerem aqui
que eu nem sequer fui ouvido
no acto de que nasci

Trago boca pra comer
e olhos pra desejar
tenho pressa de viver
que a vida é água a correr

Venho do fundo do tempo
não tenho tempo a perder
minha barca aparelhada
solta rumo ao norte
meu desejo é passaporte
para a fronteira fechada

Não há ventos que não prestem
nem marés que não convenham
nem forças que me molestem
correntes que me detenham

Quero eu e a natureza
que a natureza sou eu
e as forças da natureza
nunca ninguém as venceu

Com licença com licença
que a barca se fez ao mar
não há poder que me vença
mesmo morto hei-de passar
com licença com licença
com rumo à estrela polar"


"Fala do homem nascido", António Gedeão

sexta-feira, dezembro 25, 2009

Luz apagada

Uma cozinha de luz apagada. Um suspiro no escuro. Um abanar de cabeça. Um erro pouco errado. Um passo em frente. Outro. Um (longo) minuto. Um esgar que parece um sorriso. Uns olhos que se fecham, por fim. Silêncio.

quinta-feira, dezembro 24, 2009

Rabanadas

As rabanadas são talvez o doce de Natal mais fácil e mais difícil de fazer. São simples, não exigem malabarismos na cozinha. Ao mesmo tempo, são frágeis… ou lhes tocamos com o nosso maior jeito ou partem-se ao meio., desiludidas com a nossa falta de cuidado.

Hoje, enquanto oiço fado e bebo um café num sofá que tantas vezes não consigo sentir como meu, penso nelas. Nas rabanadas da minha vida. Aquelas que entraram sem ser minha escolha. As que, quando dei conta, tinha escolhido. Todas, alvo de carinho incondicional. Decido não enviar sms natalícias em massa. Este ano falo apenas com aqueles que fazem parte da minha travessa de rabanadas. Não são muitos. Alguns passarão pela minha mesa, outros pelo meu telefone, outros eternamente pela minha memória até nos reencontrarmos num mundo longe daqui. Serão para sempre aqueles a quem poderei dizer que não, mas a quem nunca virarei a cara. Aqueles que tantas vezes me magoam, mas também amam… na sua estranha forma de amar. Aqueles por quem partirei… e também voltarei. Aqueles por quem farei as maiores loucuras… E os maiores erros. Aqueles a quem perdoarei todas as dores. Aqueles em quem descarregarei as minhas frustrações… porque sei que estarão sempre lá. Aqueles a quem darei a mão e em cujo ombro chorarei mais uma vez. Aqueles em quem pensarei quando estiver longe… e quando estiver perto. Aqueles que fazem parte de mim. Aqueles por quem nunca vou desistir. A minha gente.


segunda-feira, dezembro 21, 2009

Bolachas

Tento cozinhar bolachas, o mínimo possível. Porquê? Porque sei que em mim haverá uma vontade primária de abrir o pote e desfrutar da sua doçura escondida. Da dureza que tantas vezes já se quebrou na minha boca, revelando afinal ser uma massa macia. Evito ficar com vestígios de açúcar polvilhado na minha cozinha. Talvez para eu mesma não me lembrar que as comi. Mas quando abro o pote... sinto o cheiro, meto a mão e toco-lhes, levo-as à boca e saboreio… sinto que estou a faze-lo como se fosse a última vez. Porque na realidade nunca sei se haverá uma próxima. Ou se eu mesma ainda a quererei. Hoje, sei que sim. E, em segredo, tento abrir o pote sem pensar muito.

domingo, dezembro 20, 2009

Frase batida

Num copo alto bate-se uma noite de conversas sem entraves nas palavras. Onde os olhos se fecham para sentir a música. Onde o corpo reage ao ritmo e deixa-se simplesmente levar. Onde a alegria se sente nos sorrisos. Onde a calma máxima é atingida em perfeita alucinação no meio dum concerto, dum bar, duma discoteca, da rua. Gosto de noites assim. Simples, sem constrangimentos pouco gourmet. No ouvido ficou-me uma música cuja letra condiz comigo. "Bebe-se a coragem até de um copo vazio... e vem-nos à memória uma frase batida: hoje é o primeiro dia do resto da tua vida". Todos os dias. Não me devia esquecer disto.

quinta-feira, dezembro 17, 2009

Papa Nestum

Posso ter poucas certezas na vida, mas que gostava de ter a papa Nestum presente na minha cozinha, essa é uma delas. Quero acordar de noite para aquecer leite. Quero abrir o pacote do nestum com o amor mais incondicional de todos e sorrir no meio do cansaço. Quero embalar um filho nos braços. Quero assistir ao seu crescimento. Ser parte integrante do seu desenvolvimento. Ensinar, guiar... ceder. Quero ouvir risos, correrias e gritos. Quero dar beijos ternos. Quero mimar, compreender, (saber) ralhar. Quero desiludir-me em segredo quando já não for eu a pessoa mais importante da sua vida. Não sei quando, mas um dia quero amar, na sua forma mais honesta… onde mais do que o sangue, o que importa é o coração. Hoje, isto fez-me sorrir e reforçar esta vontade.

segunda-feira, dezembro 14, 2009

Vinho

Tinto: porque há uma constante escuridão presente na minha garrafa. Límpido: porque reflecte os meus olhos totalmente inebriados. Envelhecido: como os muros da cozinha que (por momentos) esqueci terem uma razão para existir. Frutado: porque só o doce de sempre nos tira o gosto amargo que esperavamos sem querer esperar. Aroma intenso: porque não gosto de ter dúvidas quanto ao sabor. Alto teor alcoolico: porque sei que (afinal) nada sabia. Em copo alto: porque, de olhos fechados e sorriso nos lábios, volto a brindar a mim. Quando (ainda acreditava que) era o que menos queria fazer.

sexta-feira, dezembro 11, 2009

Molho de natas com cogumelos

Nunca um molho com cogumelos poderá ser igual a outro que comemos anteriormente. Frescos ou de lata, a textura dos cogumelos muda tudo. Com café ou com mistura de pimentas, o sabor muda. Com mostarda ou sem, a cor nunca será igual. Com vontade ou sem vontade, também isto muda o rumo final do prato. Gosto desta improbabilidade. Cada molho é um molho. Mesmo que seja sempre a mesma pessoa a cozinhar.
Dou por mim envolvida em molhos de natas e cogumelos improváveis onde o que menos esperamos se torna numa probabilidade. Desconhecidos tornam-se conhecidos. Noites calmas transformam-se num carrossel onde me sabe bem estar. Gosto de telefonemas improváveis que me mudam o rumo de um dia e me levam de volta a refúgios onde há muito não ia... para ficar. Agora num carrossel de calma. Gosto da sinceridade desses momentos, dos olhos que, embora tenham entrado na minha vida num passado recente, me conhecem e me fazem sentir viva na minha simplicidade e dúvidas constantes. Simplesmente eu. A rir alto. A comer com a mão. A cantar desafinada. A dar um abraço apertado só porque me apetece. Gosto de dizer: "apetece-me escrever" e em resposta ter um sorriso cumplice de quem me lê nas entrelinhas. Gosto de escrever este post com os copos e ter noção de que amanhã não o quererei apagar porque simplesmente é uma improbabilidade provável... envolvida em molho de realidade. Gosto. Gosto mesmo.

quarta-feira, dezembro 02, 2009

O (real) prazer de cozinhar

Nunca uma cozinheira poderá esquecer o momento em que abre a porta da cozinha disposta a cozinhar. A verdadeiramente cozinhar. Sabendo à partida dos riscos de fugas de gás. Do lume que poderá acender rápido demais e queimar a mão que carrega o fósforo. Dos ingredientes que, no fim, poderão simplesmente não fazer sentido juntos.

Todos nos lembramos de como é cozinhar um prato sem a expectativa de conseguir atingir uma iguaria no fim. Só pelo prazer de ali estar. De misturar no tacho as cores, as texturas, os sabores, os cheiros… e ver crescer algo novo. A cada minuto. Mexer, hesitar, juntar mais de uma qualquer coisa escondida anteriormente num frasco, levar até ao fim a agradável estranheza de saborear a evolução de um prato que, inevitavelmente, vai ver a sua confecção terminada um dia. E isso não é mau, é apenas a realidade.
É talvez esta sinceridade da cozinha que me faz apaixonar pelos tachos. Não sei se algum dia cozinharei a pensar que no fim vou ter a travessa mais gourmet na minha mesa. Talvez. Mas, até lá, quero apenas sentir esta honestidade imensa de experimentar a força do lume sem ter vontade de o desligar.