quarta-feira, março 31, 2010

Temp(er)o

O tempo é uma das palavra-chave na culinária da vida. Às vezes os pratos apuram, noutras acabam queimados, noutros ficam desfeitos, noutros enrijecem sem volta a dar. Tudo por causa do tempo. A mais, a menos. Não é a primeira vez que falo nisto, mas hoje apetece-me outra vez.
Há uns tempos, um grande amigo disse-me “Paulinha, as pessoas esquecem-se frequentemente do privilégio que é ter tempo”. Tinha acabado de chegar de uma volta ao mundo, entre pratos de todas as cores e sabores. No meio de frigideiras com restos eternamente colados e pedidos que nunca terminam de chegar ao balcão da minha cozinha, oiço o tic-tac também constantemente contra mim. Ele voa, eu não o vejo passar. Não é que tenha aumentado o ritmo, apenas se mantém ano após ano. E assim ganha velocidade sobre a minha capacidade de resposta.
Aproveito o “tempo” o melhor que posso quando saio das obrigações diárias. Deixo as outras em banho-maria porque estou cansada de as ter quando não são, realmente, minhas. Conduzo à noite rumo a casa com os olhos a teimarem fechar-se a qualquer minuto sem me darem poder de escolha. Ultimamente tem-me acontecido mais do que eu desejava. Durmo 13 horas seguidas pela segunda vez na mesma semana. Estarei esgotada? O corpo revela-me que sim. Mas é cá dentro que mais o sinto.

segunda-feira, março 29, 2010

Tortilhas


Cebola às rodelas com lágrimas escondidas. Batata consistente para conseguir enfrentar um mundo que um dia desaba, mas não pára. Chouriço picante de quem quer viver tudo o que pode. Ovos que envolvem eternamente todos os ingredientes à sua volta. Depois de frita, por vezes até queimar, a tortilha alimenta muitas bocas. Que reclamam, egoistamente, a sua possível ausência.
Há um dia em que a tortilha quer ser livre. Quer voar da frigideira para um qualquer outro prato longínquo. Começa como uma fuga. Mas termina por ser um processo de cozedura emocional, em que a tortilha percebe que não há refeições insubstituíveis no menu. Quando ela não estiver, haverá mais comida. Na verdade, a fome nunca baterá à porta.
Não há uma tortilha que seja igual à outra. Mas há algumas que inevitavelmente acabam por se cruzar no prato da vida. Podem nunca mais se voltar a ver, mas vão sempre lembrar-se desse encontro. Porque têm a mesma essência. O mesmo sabor… Estas coincidências eu já deixei de tentar perceber. Mas é bom quando inesperadamente alguém surge apenas para nos compreender num olhar.

terça-feira, março 23, 2010

Pastéis de poesia

São três da manhã. Para trás ficam os sons e cheiros do Bairro Alto. E, na cozinha, continuamos a discutir os ingredientes dos pastéis da poesia. Ele, que tantas vezes não sabe ser cozinheiro, ensina-me o que melhor sabe fazer: música. Explica-me como se devem bater os ingredientes (no papel), como se deve cortar a massa em quadras ou sextilhas, como e quando se deve polvilhar com um refrão. Ensina-me a arredondar sílabas de forma perfeita. Como juntar palavras que noutra receita não fariam sentido.
Revela-me os seus pastéis secretos. A sua sensibilidade, que tantas vezes serviu de recheio aos que cantam noite adentro. Espanta-me que também ele tenha dois lados de uma só pessoa. Que consiga ser tão contraditório quanto eu nisto do coração. Desta vez não frito os pastéis. Deixo-os repousar na bancada porque o silêncio e um sorriso é (às vezes) a melhor poesia que podemos oferecer a alguém. No ouvido, ficou-me esta até adormecer:

sábado, março 20, 2010

Adoçante

Abro o pacote do adoçante. Sinto-lhe o cheiro. Toco-lhe com a língua só para ter a certeza que é mesmo doce. Deixo-o cair no café. Vejo-o a desfazer-se. O amargo ganha outro sabor. Bebo-o sem pressa, mesmo que tenha urgência dele. Sei que o adoçante é uma mentira de doce. Mesmo quando acredito que não.
Mas nem por isso deixa de saber sempre bem. Por um momento.

quarta-feira, março 17, 2010

Batata

Podemos esmurrá-la com toda a força. Cozê-la nas mais altas temperaturas. Fritá-la até estalar. Esmigalhá-la até fazer puré. Mas nunca deixa de ter um sabor especial. Mesmo quando, simplesmente, nos esquecemos de lhe dar a devida importância. Assim é a batata. E a vida também.

segunda-feira, março 15, 2010

Espinafre

É alto, esguio, frágil na aparência, mas forte por dentro... como só quem já passou agruras na horta da vida sabe ser. Tenho um amigo que é assim. Já perdi a conta aos anos, mas já lá vão muitos desde que lhe comecei a chamar espinafre.
Há vegetais que entram na nossa cozinha sem querer e que a culinária da vida se encarrega de manter no nosso caminho repetidamente, tornando-os em presenças habituais no menu. Criam-se laços, geram-se sentimentos de protecção e carinho que nem mesmo o tempero mais avinagrado consegue estragar. Talvez por isso, quando de manhã me dizem em tom grave "o 'espinafre' teve um acidente" sinto-me a desfalecer durante uma fracção de segundo que parece durar uma eternidade. Mantenho o meu ar mais sereno (como é hábito), mas só sossego a minha couve coração quando oiço uma voz de sempre garantir-me que o espinafre continua rijo, embora de molho à espera de ir à faca.
Salteio-o de palavras positivas e piadas parvas. Tenho a certeza que a força que lhe é característica (talvez para muitos desconhecida) não vai faltar. Agora, em casa, suspiro finalmente. Já não foi uma estreia nossa de sorrisos doridos entre as paredes brancas. Mas sabe sempre demasiado amargo, como se fosse a primeira vez.

domingo, março 14, 2010

Travessia de claras em castelos

Há um tempo em que temos a força toda, outras em que o braço cede e quebramos o ritmo. Não há regras: O segredo é nunca parar. Mesmo que a vontade seja muita.
Batemos os castelos para eles se desfazerem a seguir. Mas insistimos em voltar a ergue-los. Porquê? Talvez porque aqueles pequenos momentos fugazes nos fazem roçar aquilo que julgamos ser a felicidade. A memória faz o resto. Vale a pena? Ainda não percebi. Mas acredito que sim. Nem tudo tem de ser percebido.
Continuo a bater porque desisitir não faz parte das coisas que me estão permitidas. Mudo de mão. Troco o garfo por um batedor de claras. Mantenho apenas a essência da receita: uma pitada de mim. Por mais vezes que mude e escolha novas formas de chegar aos meus castelos, eu sou o único ingrediente que nunca me irá faltar. Por mais longa que seja a travessia:

"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas,
Que já tem a forma do nosso corpo,
E esquecer os nossos caminhos que
nos levam sempre aos mesmos lugares
É o tempo da travessia.
E se não ousarmos fazê-la,
Teremos ficado para sempre
À margem de nós mesmos"
(Fernando Pessoa)

quinta-feira, março 11, 2010

Aguardente velha

Estou a descer a escada do prédio e deparo-me com um homem entroncado, barba por fazer, que me mira de alto a baixo enquanto puxa uma passa no cigarro. Por trás do tamanho, vejo-lhe o brilho infantil nos olhos e a timidez disfarçada num “bom dia” em tom decidido de homem feito.
Só quando chego ao carro é que consigo chegar a uma conclusão: era o miúdo do andar de cima. O mesmo que, ano após ano, ouvi a sair para a escola aos saltos pela escada fora. Cresceu. Está um homem. Será que também eu estarei diferente aos olhos dele?
Penso nos últimos anos e percebo que voaram. Há um ritmo alucinante que se mantém na minha vida, sem que eu consiga carregar no botão pause. Como se a minha necessidade de sugar cada minuto me envolvesse num carrossel demasiado acelerado que me deixa tonta, mas nunca enjoada.
Entro na cozinha e olho para a prateleira onde guardo a aguardente. Transparente, forte, simples… cada vez mais envelhecida, mas consequentemente mais intensa. Tal como eu. Não é bom, nem mau. É. Não tem a ver com a idade, tem a ver com o que se vive. Com o tempo e a falta dele. Já um dia escrevi isto aqui na cozinha e hoje volto a sentir o mesmo: a vida não pára. E eu também não.

domingo, março 07, 2010

Caramelo

Basta pensar que é feito a partir de açúcar e pouco mais. Já a consistência, essa será sempre dura. Mas mesmo assim, doce. O pior do caramelo é que custa a sair dos dentes. Mesmo depois da digestão estar definitivamente feita. Sei que podia comprar um fio dental mais eficiente mas não quero. Por mais contraditório que possa parecer, gosto dos vários restos dispersos que, ao longo dos anos, vão ficando eternamente presos na minha boca. Já não são eles que me alimentam, mas sabem-me bem. Não tenho jeito para guardar gostos azedos, é uma verdade. Ainda bem.

sexta-feira, março 05, 2010

Tempero recuperado

"There is nothing like returning to a place that remains unchanged to find the ways in which you yourself have altered" (by Nelson Mandela)

Tenho a sorte de ter sempre onde recuperar o tempero. Onde me perco e encontro. Onde volto sempre para depois partir, sem nunca chegar a ir embora. Não me falha o sorriso sincero. O olhar duro quando sei que optei por abusos gastronómicos. As palavras... as eternas palavras que voam entre sonhos e angústias, partilhadas tantas vezes em sussurros ou gargalhadas estridentes. Às vezes, no silêncio.
Há um refúgio em forma de galheteiro (que se multiplica em vários) onde posso voltar vezes sem conta e restabelecer os sabores em falta no meu menu. Onde descubro o que mudou em mim. E o que nunca há-de mudar. Tenho sorte pelo abraço. Mesmo eternamente tão diferentes na nossa essência, ele é dado com sentimento igual. O da amizade genuina. Tenho sorte, tenho mesmo.