sexta-feira, maio 28, 2010

Café com leite

Uma cozinheira, no sentido total da palavra, não deveria demonstrar resistência a novas formas de cozinhar algo que já há muito tempo faz parte do seu habitual menu. Peco neste aspecto, tenho de confessar.
Lembro-me de uma vez no meio do Laos ter visto um restaurante que vendia café com leite ao pequeno-almoço. Ao fim de três semanas sem a minha meia-de-leite, nao olhei para trás. Sentei-me. Aguardei impaciente.
Serviram-me um copo de café escuro com leite condensado no fundo. Sem conseguir esconder a decepção, pus o copo de lado. Continuava demasiado apegada ao sabor que tinha deixado para trás em Lisboa. Hoje percebo que teria sido mais sábio da minha parte ter, ao menos, tentado experimentar aquele mistura escura e doce. Porque quando menos esperamos somos surpreendidos com novas formas de saborear o que já achavamos conhecer de cor. E pode saber bem.

quarta-feira, maio 26, 2010

Degustação de memórias

Encontrei-o em Lisboa. A doçura do seu olhar e a calma das suas palavras continuavam iguais. Caminhámos pelas ruas da minha cidade e nelas senti novamente os cheiros e os sons da outra ponta do mundo. Sentámo-nos nas Portas do Sol. Passaram horas. Era o sítio perfeito para um reencontro.
Falámos sobre a vida. Sobre o passado, o presente e o futuro. Dos rostos que ambos conhecemos e daqueles que cujas apresentações ficaram ao cargo dos astros. Rimos, como fizéramos em Bali. Ouvi novamente os seus conselhos. Fiquei a pensar neles durante os minutos de silêncio mútuo nas ruas de Alfama.
Há momentos que nos trazem à boca o sabor de muitas memórias. As melhores memórias. As que ficam guardadas no coração. E com elas o rio corre, tranquilo. Mesmo que a velocidade seja muita.

quarta-feira, maio 12, 2010

Gelado de requeijão com marmelada

Há cor. Há doce. Há salgado. Há texturas que se derretem. Há frio que magoa os dentes. Há marmelada que se cola aos lábios. Há canela. Há bocas lambuzadas. Há gula. Há um fechar de olhos. Há intensidade nos sabores. Há um sorriso. Há uma dúvida sobre se vai fazer mal. Há uma língua que lambe a colher. Há um suspiro. Há um sabor a pouco. Há uma barriga cheia de muito. Gosto quando é assim. Cinco minutos de tudo.

terça-feira, maio 11, 2010

English breakfast

O ovo é frito até a gema brilhar… pronta a rebentar, na sua habitual compostura. As salsichas são atiradas para a frigideira, uma a uma. Ganham cor, mas não se perde muito tempo com elas pela manhã. Juntam-se torradas, aparadas, sem côdeas duras indesejadas. Há três tipos de doces, com texturas diferentes que me põem a boca sem amarguras. Da cafeteira topo de gama sai café, com aroma gourmet vindo de longe e de perto. Há também sumo abundante, de (muitos restos de) frutas tropicais. O pequeno-almoço é servido num tabuleiro bonito. Dizem que a vista também come. Tenho de concordar. Abro o melhor dos guardanapos de linho. Sinto-lhe o cheiro perfumado, que poderia inebriar o meu olfacto ainda tão jovem e ansioso por mais e mais. Há uma flor ao lado. Gosto. Afinal, é sempre romântico ter flores na mesa. Mas então, porque será que nada disto me entusiasma?
Levanto-me. Continuo a preferir uma meia de leite e um pão com manteiga.
Simples. (Como eu).

segunda-feira, maio 10, 2010

(...)

Quantas vezes podemos sentir-nos desiludidos na culinária da vida? Quantas vezes nos podemos surpreender a sorrir? Quantas vezes podemos acreditar em algum sabor? E quantas vezes podemos ter de assumir que, afinal, estávamos errados?
Na cozinha, resisto-lhes. Desacredito na minha capacidade de (ainda) sentir o baque do ingrediente inesperado. Como se houvesse uma total imunidade à alegria e à tristeza súbitas. Mas quando menos espero: saboreio-as. Em dose dupla. Vindas de diferentes frascos presentes na minha prateleira das especiarias diárias. Surpresas que fazem sorrir, desilusões que me tiram a vontade. Certezas transformadas em incertezas. Incertezas transformadas em certezas. Calo-me. Perguntam-me o que tenho. Calo-me. Decido desligar o fogão e não cozinhar. Pelo menos hoje. Amanhã, logo se vê.