segunda-feira, fevereiro 28, 2011

Sopas de cavalo cansado


"O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto alguém.
Essas coisas todas
Essas e o que faz falta nelas eternamente;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço.
Íssimo, íssimo. íssimo,
Cansaço..."
~
Álvaro de Campos

segunda-feira, fevereiro 21, 2011

Iscas com elas

Havia alturas em que eram um petisco delicioso. Outras em que o vinagre falava mais alto e impestava a cozinha com um cheiro que ainda hoje consigo sentir quando me deito à noite no escuro. Depois havia as elas. As eternas elas a acompanhar.
Quando se cresce entre frigideiras quentes a fumegar ausências presentes, a nossa percepção do lado supostamente mais saboroso da culinária da vida fica irreversivelmente adulterado. Mesmo que o deles tenha finalmente encontrado tempero.

segunda-feira, fevereiro 14, 2011

Alma recheada

"És uma mulher com alma"

Não foi preciso sal, nem pimenta. Muito menos mel ou manteiga. Bastou apenas ser no ponto certo. E foi das coisas mais bonitas que me cozinharam ao ouvido nos últimos tempos.

sábado, fevereiro 05, 2011

À mesa com o solitário (II)

Ele: Mas que raio percebes tu disso?
Eu: Mais do que muita gente possa imaginar.
Ele: (silêncio)
Eu: (silêncio)
Ele: Tens uns olhos de anjo magníficos. Só ainda não consegui perceber que diabo se esconde por trás deles.

sexta-feira, fevereiro 04, 2011

À mesa com o solitário (I)

Eu: O rádio fica sempre ligado?
Ele: Gosto do buliço, preciso dele para dormir. Tu gostas do silêncio?
Eu: Cada vez mais.
Ele: Então tenta ouvir com atenção a melodia que ele tem. O som do silêncio consegue ser um barulho verdadeiramente ensurdecedor.

É sempre naquela esquina que nos cruzamos. Invariavelmente convida-me a entrar e sentar. Às vezes são apenas umas frases rápidas com uma promessa de voltar noutro dia. Outras, deixo-me ficar durante horas, entre o cheiro a cigarros e a madeira velha. Não há comida nesta refeição a dois. Mas volto sempre de barriga cheia.