Há suflés tão simples como algumas palavras. No Dia da Poesia, sem sequer ligar o forno sirvo-vos esta massa crua que um dia foi cozinhada por alguém que já sentiu o mesmo no início da Primavera:
No te quiero sino porque te quiero y de quererte a no quererte llego y de esperarte cuando no te espero pasa mi corazón del frío al fuego.
Te quiero sólo porque a ti te quiero, te odio sin fin, y odiándote te ruego, y la medida de mi amor viajero es no verte y amarte como un ciego.
Tal vez consumirá la luz de enero, su rayo cruel, mi corazón entero, robándome la llave del sosiego.
En esta historia sólo yo me muero y moriré de amor porque te quiero, porque te quiero, amor, a sangre y fuego.
Ele: Estiveste doente e não me disseste nada. Não percebo. Eu: Gosto de resolver estas coisas sozinha. Ele: A última vez que fui ao hospital foi há muitos anos. Fizeram-me exames a tudo. Chegaram à conclusão de que não tenho coração. Eu: Às vezes é melhor assim. Ele: (acende o cigarro e abana a cabeça) Eu: (franzo-lhe o sobrolho) Ele: Não. Não queiras chegar a essa conclusão com essa idade.
Movidos pelo sabor comum do descontentamento, trezentos mil ingredientes à rasca uniram forças na panela de pressão. Aos vegetais ainda tenros juntaram-se as carnes já enrijecidas por vidas difíceis. A fervura levantou rapidamente e os (dis)sabores de todos estes alimentos misturaram-se de uma forma única. Com emoção.
É certo que não é fácil juntar, de forma harmoniosa, alimentos distintos numa só receita. Houve muita gente com dúvidas sobre o sucesso do resultado final. Houve muita gente que desejava secretamente que acabasse numa tremenda indigestão ou azias agressivas. Mas não. E depois de ver morcela da extrema-direita lado a lado com chouriço de sangue da extrema-esquerda sem haver molho na travessa, consegui perceber o que realmente significa viver numa cozinha pacífica.
Foi especial. Mas só quem percebeu a tempo que este seria um cozido à portuguesa histórico e optou por fazer parte dele é que poderá compreender o significado destas duas palavras.
De vez em quando o corpo obriga-me a parar. E é nestas fases que invariavelmente penso nas reais prioridades da minha culinária da vida. Morder e saborear calmamente a maçã continua a estar no topo do menu.