quinta-feira, janeiro 28, 2010

Raivas

Desligo a música. A receita exige silêncio.
Abro um círculo no meio da farinha fina, como uma vala comum para todos os ingredientes desta sobremesa. Atiro-os com fúria: restos de manteiga derretida, de ovos moles e de açúcar em tons de amarelo. Caem salpicos no chão. Não quero saber.
Arregaço as mangas, respiro fundo e começo a misturar tudo. Primeiro devagar, como se ainda tivesse dúvidas. Depois com força, que se transforma numa violência desconhecida. Agarro a massa à mão cheia e vejo-a a escorrer-me entre os dedos. Puxo. Estico. Esmurro. Sinto os braços doer. O suor surge-me na testa, mas já não quero parar. Agrido aquele bolo cru como se limpasse a alma. Será?
Paro. Olho para aquela raiva gigante, que nunca poderia ficar bem cozida, e decido ser prática. Divido a massa em tiras finas, fazendo um pequeno rolinho com cada uma das recordações que tenciono levar ao lume. Pior: entrelaço-as, para que nenhuma esqueça o gosto amargo da outra. Este esforço minucioso cansa-me. Sinto-me tão cansada. Distribuo as raivas num tabuleiro negro e levo-as ao forno, em temperatura máxima. Hão-de endurecer.
Enquanto os meus olhos secos olham pela janela, por momentos penso que afinal as raivas não fazem sentido numa cozinha como a minha. Não, outra vez. Sinto a ânsia no peito e procuro alguma cobertura milagrosa que as componha no fim da cozedura. Reviro as prateleiras mas não consigo encontrar qualquer réstia de chocolate para derreter. O frasco do mel rola, vazio, pela bancada. Em desespero agarro no pote do açúcar para polvilhar. O cansaço faz com que as mãos tremam e deixo-o cair. Parte-se em mil cacos. No ar desvanece-se a poeira doce, para não mais voltar. Baixo os olhos e desisto.
Apita o alarme do forno e lá estão elas: raivas duras, triunfantes. Ponho as mãos na anca sem saber o que fazer. Não gosto deste tipo de sobremesas no meu menu. Atiro-as para dentro de um saco. Fecho-o. Dou um nó. Outro. Atiro-as para o armário mais alto de todos, onde dificilmente conseguirei chegar. Mas sabendo que consigo, se assim quiser.
Aproximo-me do forno mas o calor já desapareceu. Sento-me no chão de pedra gelada e apercebo-me de como a cozinha ficou fria. Simplesmente fria.
Nem o calor das raivas sobrou.

sexta-feira, janeiro 15, 2010

Palavras gourmet

Enquanto tento atirar para o lixo todos os frascos de um desânimo que de repente se instalou nos armários mais inacessíveis da minha cozinha, tropeço num texto que me faz parar e pensar. Poderia ter pouco de gastronómico... mas o que é o amor senão um grande cozinhado cuja receita nunca será totalmente desvendada? Não sei se sou ingénua por acreditar nisto do coração, mas o meu sincero aplauso a estas palavras gourmet.

Elogio ao amor

“Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la. Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível. A culpa é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo.

O que quero é fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.

Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em “diálogo”. O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam “praticamente” apaixonadas.

Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do “tá bem, tudo bem”, tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?

O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida,o nosso “dá lá um jeitinho sentimental”. Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar.

O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A “vidinha” é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende.

O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha – é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a Vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também.”

Miguel Esteves Cardoso

terça-feira, janeiro 12, 2010

Carne no forno

Varre-se com o braço tudo o que não interessa: em dias em que não há tempo a perder, a bancada da cozinha precisa de espaço para o tempero. Abre-se uma garrafa de vinho branco para ajudar a carne a ficar mais tenra. Descasca-se o alho sem qualquer delicadeza… seja como for, ele terminará em pasta. Atira-se a carne para cima da bancada. Sente-se o seu cheiro cru. Desta vez esquece-se qualquer manteiga derretida e esfrega-se com pimenta. Junta-se um inevitável fio de azeite pouco virgem para que as mãos deslizem melhor. Dum lado, do outro, até que a carne ganhe cor.
Salteia-se com malaguetas picadas e gengibre esmagado sem dó, contra a parede. Está frio e as janelas da cozinha embaciam. Talvez tenham sido sabores picantes a mais, mas o gosto é inconfundível. A mistura de cheiros faz com os olhos se fechem e a boca fique seca. A cabeça anda à roda, inundada pela intensidade do prazer anunciado de que o fim está a chegar. Silêncio. Ouve-se, após uma eternidade, o tic-tac do relógio da parede. No chão continuam os frascos caídos, com especiarias por abrir e recordações de outros temperos. Deixa-se marinar durante cinco minutos até recuperar o fôlego e ter força para meter o tabuleiro no forno. Está frio, mais uma vez. Mas a carne só quer ficar no quente até ouvir o apito, em sinal de que a confecção acabou. Sai sem ficar queimada. E, com o seu melhor ar, volta à mesa onde todos estão habituados a vê-la.

sexta-feira, janeiro 08, 2010

Feijão e arroz

Um negro, outro branco. As diferenças começam aqui. Mais: Um é à partida seco e solto, com medo de se apegar; O outro gosta de mostrar logo o seu melhor caldo pastoso que, porém, nunca irá voltar a dar a ninguém… a não ser apenas para provar. Contudo, são ambos portadores de uma simplicidade complexa que os torna demasiado iguais no prato da vida. E é aqui que começa a química do feijão preto e do arroz.
Lado a lado partilham o prato, sabendo que nunca poderão vir a ser cozinhados dentro do mesmo tacho. Ainda assim, o arroz não gosta quando o feijão fica frio. Mas esforça-se, com cada vez menos goma, por perceber que nem sempre a travessa consegue aquecer da mesma forma as suas composições distintas. Dentro da igualdade, são diferentes. E disso, já nenhum dos dois se esquece.
Por motivos diferentes e iguais, ambos conhecem a panela de pressão. O som do apito e a força do vapor, que queima até ao mais fundo que pode haver, nunca sairão das suas consistências. E esta ligação, de quem se queimou e mesmo assim permanece com ar intacto, poucos poderão algum dia perceber. Embora o feijão tenha receio de afogar o arroz no seu caldo negro, o arroz gosta de se deixar envolver… porque sabe que (ainda) não está na hora de perder o seu lado branco, mais imaculado.
Pela mesa passam espetos com salsichas e entremeadas, bem passadas, mal passadas, mas incapazes de entender porque o feijão e o arroz continuam a sorrir discretamente um ao outro, quando já deviam ter esgotado a sua capacidade de(se) partilharem. Embora juntos desfrutem do sabor da carne na travessa vezes sem conta, ambos sabem que não vão limitar a entrada de bananas fritas e couves mineiras no menu. A vida é um rodízio demasiado grande e nenhum quer abdicar da sua enorme variedade. Mas, onde quer que estejam, vão ser sempre o feijão e o arroz. Lado a lado. Mesmo que cozinhados em bicos distantes no fogão.

quarta-feira, janeiro 06, 2010

Açorda de satisfação

Se a um pão muito rijo juntarmos um punhado de súbita satisfação e mexermos bem... muito bem, durante umas boas horas, sem pressas, apenas com vontade, chegamos à açorda que faz a minha cozinha hoje desligar o fogão com um sorriso parvo nos lábios. Pão alentejano, nem vê-lo. Continuo a achar que a robustez e simplicidade da carcaça é o ideal nos meus pratos.
Gosto de desligar a luz da cozinha com esta sensação de satisfação. De sorrir perante a possibilidade de contar o mundo e ter uma vontade imensa de o fazer... como há muito não tinha. De perceber que as minhas palavras e atitudes ainda são verdadeiramente compreendidas por alguns. Sabe-me bem sentar-me à mesa para comer a açorda e, em vez de um jantar à partida distante, acabar a saborear sem faca e garfo o outro lado de mim. Gosto de perceber que as portas estão abertas. Agora e amanhã. De sentir no corpo o cansaço extremo e mesmo assim não conseguir dormir. De percorrer as ruas escuras da cidade sozinha. Na penumbra de quem hoje já não quer ser vista. Gosto de desligar o carro e ficar sentada uns minutos para deixar terminar a música que o meu rádio - que concluo ter vida própria - insiste em fazer-me ouvir. Como um género de coentros (congelados) no topo da açorda, de que me tinha esquecido sem sequer dar conta. Hoje foi assim:

sábado, janeiro 02, 2010

Lotes de Café

Na cozinha dela existe uma caixinha, por sua vez cheia de caixinhas... cada uma com uma aroma, um tamanho de grão, um tipo de café.Há café do Quénia, simples... tão simples. Há café do Brasil... cheio de vida, ritmo e vontade de ser ousado. Há ainda o que vem das origens árabes... ligeiramente conservador, fã da união familiar que um dia irá (tentar) encontrar. Há o café de São Tomé, com sorrisos espontâneos e calor, muito calor. Há por fim os grãos vindos das Indonésia... raros para muitos, mas uma realidade (ainda demasiado) presente na sua cozinha.
Ela entra o ano a olhar para a caixa. Sem saber muito bem se lhe apetece sorrir, cantarola alto enquanto mexe o corpo involuntariamente: “tenho dores fechadas em caixinhas, contra mim contra ti, contra láááá...”. Dores em todos os seus lotes de café. Os mesmo que lhe dão vida, dia após dia. Os mesmos que a tornam única na sua complicada maneira de ser. Chega a essa conclusão enquanto caminha com o frio a bater-lhe na cara. Muitos alguéns já lhe tinham dito isto. Naquela noite ouviu-o outra vez. Na manhã seguinte, ouviu-o outra vez. E, enquanto bebia um café, compreendeu. Finalmente compreendeu. E sorriu.