quinta-feira, dezembro 30, 2010

Sonhos amarelos

Passaram-se alguns anos desde a última vez que os sonhos amarelos me visitaram pela calada da noite. Com o ano a terminar, eles fervilharam uma vez mais na minha cabeça, sem receita prévia.
Acordei de manhã e ainda lhe sentia o cheiro. Não sei se era a bolos ou apenas ao forno da minha culinária da vida. Mas o cheiro estava preso às minhas narinas.
Havia uma grande portada que se abria de par em par para me deixar entrar. Os raios de sol furavam tranquilamente a penumbra densa e senti um calor no peito. Não é grande, apenas espaçosa. Ouvi risos e correrias. Fechei os olhos e deixei-me invadir pelo maior dos amores. Não consigo ver-me a mim. Não sei se sou velha, se sou nova. Serão aqueles risos dos meus filhos ou dos meus netos? Não sei. Só sei que sinto paz. E que é ali que pertenço. À minha (eterna) casa amarela.

domingo, dezembro 26, 2010

quinta-feira, dezembro 23, 2010

Salada russa

Não consigo precisar em que momento toda a salada ficou fria... para nunca mais voltar atrás. Não sei quando é que todos os meus pedacinhos cortados com alguma infantilidade deixaram de ser formas curiosas na travessa, para passarem a pedaços fortes, cozidos, secos, sem deixarem contudo de acreditar na maionese que os vai acariciando e tornando-os macios.
É difícil lembrar-me da hora em que abri o frigorífico da alma para tornar a minha salada russa em algo que, pouco a pouco, deixou de ser fumegante. Quando é que deixei de ceder a jogos e manipulações, a desilusões com acompanhamentos surpreendentemente mal-formados.
Mesmo acompanhada à mesa, entrei sozinha nesta eterna confeção. Porque é assim que sempre estarei.
E com um sorriso.

quinta-feira, dezembro 16, 2010

Porta da cozinha (re)aberta

Sei que vos parece que tenho estado ausente. Que não tem havido refogados que vos cheguem ao nariz vindos daqui. Mas a cozinha não tem estado parada… apenas encostei a porta principal devagarinho para simplesmente me permitir abrir a das traseiras com toda a calma:

terça-feira, novembro 16, 2010

O Ingrediente

"Cozinhar não é um serviço", disse ela.

"Cozinhar é um modo de amar os outros"

Mia Couto, em Fio de Missangas


Nunca tive dúvidas: o mais importante ingrediente da culinária da vida é o amor. Aquele que pomos em cada pitada de abraço a um amigo. Em cada raspa de sorriso cúmplice com a nossa mãe. Em cada refogado sincero com o nosso irmão. Em cada retempero do presente com o nosso pai. Em cada olhar polvilhado de ternura deitado ao nosso sobrinho. Em cada sofreguidão de um beijo que deixou de ser só picante para ser também açucarado. Em cada momento cru que temos quando olhamos para nós próprios no espelho.

terça-feira, novembro 09, 2010

sábado, outubro 23, 2010

Empanada argentina


Não há segredos sobre a empanada: para ser boa deve ser "muy rica". Na massa quebrada estendida na bancada ao longo de quase três milhões de metros quadrados, junta-se um recheio difícil de descrever. Montanhas cortadas em pedaços irregulares, planícies de iguarias fortes, uma pitada de salinas, folclore para saltear e um pouquinho de tango escondido no meio só para fazer apurar o sabor. Juntam-se ainda doses significativas de cordialidade e um exagero de malaguetas bravas. Não há molho: a essencia da empanada é seca. Quando por fim a comi e me demorei a saborear cada um dos seus ingredientes, fiquei satisfeita.
Mas quando me perguntam porque não fiquei totalmente deliciada, a resposta é simples: porque na sua simplicidade lhe falta a alegria genuína de viver. E isso é essencial nos meus roteiros gastronómicos.

sábado, outubro 16, 2010

Pão com mel

Quando a barriga fica fria de gula a meio da noite, nada como uma ida furtiva à cozinha. Sabemos estar a pisar o risco, mas o fator caloricamente proibido faz com a saliva se forme na boca com a irracionalidade que toda a vontade irremediável de comer contém.
No maior dos silêncios, mas com a maior das urgências, tira-se o pão do saco. O pote de mel abre-se com a ajuda das mãos trémulas. O miolo do pão entranha-se no mel demoradamente. Lambem-se os lábios. Lambem-se os dedos peganhentos. Contra o armário, as dentadas são ávidas, numa corrida contra o tempo. Ninguém pode ver. Ninguém pode saber. Mas no fim não há culpas. Nem sequer palavras. Limpam-se as migalhas para não deixar vestígios. Apenas o cheiro poderia denunciar a cedência à gula.
Horas depois percebo que não havia necessidade daquela refeição secreta. Mas foi isso mesmo que a tornou tão saborosa. Digna dos melhores menus.

sexta-feira, outubro 15, 2010

Conversas na cozinha catariana (parte II)

Ele: Senhora, viaja sempre sozinha?
Eu: Muitas vezes, sim.
Ele: E não tem medo?
Eu: Já não. É algo que se aprende com o tempo.
Ele: Então e o seu marido, porque não vem consigo?
Eu: Não tenho. Em Portugal casamo-nos tarde.
Ele: (silêncio)
Eu: (silêncio)
Ele: Senhora, espero sinceramente que um dia encontre um homem à altura de todas as suas viagens.

("Também eu, Argie. Também eu", pensei sem abrir a boca). No mundo gastronómico, há pessoas que não precisam conhecer-nos há muito tempo para conseguir interpretar um suspiro ou uma meia palavra, que esconde tantas outras por trás. Há quem nos oiça sem termos de falar. Quem nos veja totalmente, sem ter olhado para nós mais do que cinco minutos. E isso sabe bem.

terça-feira, outubro 12, 2010

Conversas na cozinha catariana (parte 1)


Ele: Senhora, eu sei que nunca vou poder viajar assim pelo mundo.
Eu: Nunca se sabe. Não percas a esperança.
Ele: Já não tenho ilusões e é melhor assim. Mas gostava de lhe pedir uma coisa.
Eu: Claro, diz.
Ele: Pode enviar-me fotos das suas viagens para eu ver como realmente é o mundo fora daqui?

Há alturas em que todo o cansaço de uma viagem se dissipa para dar lugar a um aperto no peito. Por todos aqueles que já se resignaram à sua condição. Pela sorte que todos os dias descubro ter numa vida que tantas vezes já maldisse.
Viajar tem disto. Os sabores nunca mais voltam a ser iguais.

quinta-feira, outubro 07, 2010

Pastel de massa tenra

"Que carinhosa."
Quando nao temos motivos para pensar no dia de amanha, conseguimos cozinhar os piores e os melhores ingredientes de nós próprios no recheio de um pastel. E, quando menos esperamos, surpreendemo-nos a envolve-lo na massa tenra que teimamos em guardar em segredo nas gavetas mais inacessíveis da cozinha.

segunda-feira, setembro 13, 2010

Bolo das 27 camadas

Ao todo sao 27 camadas de tudo, intercaladas num bolo so. Camadas de surpresas, camadas de cliche, camadas de memorias... com recheio de coincidencia.
Este 'e o tipo de bolo que levo 'a mesa quando eu propria menos espero. E tem sempre um gostinho especial. Talvez porque nunca estou 'a espera de o cozinhar. Chamemos-lhe o bolo da sorte.
Sao poucos os que conhecem esta receita ja antiga, escrita algures num caderninho perdido no bau das minhas recordacoes gastronomicas. Mas os que tiveram a oportunidade de a ler, sabem que o gosto de um assento numero 27 no aviao que me trouxe ate Buenos Aires vai ser algo que nao desaparecera tao depressa da minha boca.

quarta-feira, setembro 08, 2010

"Volta sempre ao lugar onde foste feliz. Mas à procura de outros tipos de felicidade, que aconteçam a outras horas do dia".


(Há dias em que ainda é impossível evitar a nostalgia ao pisar os mosaicos daquela cozinha)

domingo, setembro 05, 2010

Fome

Quase todos os dias me liga. Começou tímido, até ambos ganharmos confiança. Quer-me ver. Quer abrir as minhas prateleiras mais desarrumadas, cheirar as minhas especiarias, espreitar para dentro das latas que foram ficando apenas semi abertas com o passar do tempo. Nunca o diz, mas agora que descobriu a porta da minha cozinha, quer entrar. Com fome de mim.
(E eu estou a gostar)

domingo, agosto 29, 2010

Refresco de mar

Houve alturas em que achei que a culinária da vida era como um rio. Hoje, acho que é como o mar. E enquanto as ondas vêm e vão, aqui pela cozinha deixo-me refrescar, embalar, invadir e arrastar... ao som disto:

quinta-feira, agosto 26, 2010

Salgados

Há algo de profundamente saboroso em planear uma incursão a cozinhas longínquas. Um friozinho na barriga que anuncia a fome. De novidade. De descoberta. De entrega.
Troco receitas com chefs do outro lado do oceano e vou decidindo, especiaria após especiaria, que menu tentarei degustar. Não há grandes planos. Apenas vontade. E uma escolha feita já à partida:
Sal. Do que faz arder os olhos. Do que corta a pele. Do que em excesso nos provoca tonturas. Do que nos faz ter de respirar fundo. Em preparações entre os tachos, decido que, mesmo não indo para lá do sensato, os salgados serão parte obrigatória da jornada gastronómica pelo sul.

sexta-feira, agosto 20, 2010

Sushi com wasabi derretido

Na minha cozinha o fascínio do sushi tem-se baseado na crueza. No sabor mais puro, tal qual como ele é. Sem disfarce de pitadas de especiarias. Podia até gostar do lado por vezes peganhento do arroz, mas nada como aquele aroma a verdade rude e absoluta para encher as medidas das minhas incursões em pratos experimentais.
Contudo, foi o factor wasabi que – como em tantas outras vezes – me arrebatou continuamente, enredando-me nas algas que, volta não volta, me foram tirando do sério. Não gosto de me enganar nas receitas, portanto limitei-me a ver o seu lado cru e picante. Até que um dia o wasabi derreteu por entres os paus e usou a palavra amor. Abri a boca, que a única coisa que foi capaz de dizer foi um sorriso. Com as voltas trocadas, reli a receita, em todas as suas entrelinhas, e percebi que às vezes é preciso isto para (voltarmos a) acreditar.

sábado, agosto 14, 2010

Café de filtro

Sempre achei que não deviamos usar filtros no que toca à partilha de cafés. E é o que faço (e me fazem a mim), numa manhã perdida no meio da semana.
Nesse dia chego à cozinha muito antes de qualquer chef de letras gourmet. Cumprimento-as com um bom dia e um sorriso. Dou-lhes uma pitada de música alta, enquanto ambas nos dedicamos aos nossos diferentes refogados. Um dia convidam-me para partilhar com elas o café. Rostos que tantas vezes passam simplesmente despercebidos a quem partilha a cozinha de letras comigo. Aceito, com prazer, entrar no seu mundo... num momento de cozinha de fusão. E foi-se tornando um hábito.
Sem filtros, explicamos umas às outras as nossas profissões. Enquanto bebo o café da cor delas, não posso deixar de as admirar pelas suas histórias repletas de sacrifício e coragem. Mulheres que se desdobram na vida, sem que ninguém lhes bata palmas no fim. A conversa é sempre rápida, no início tímida, mas por fim de uma sinceridade comovente. São dez minutos que me fazem sempre pensar. Que me fazem perceber que um sorriso quebra barreiras com muita facilidade. E que são os pequenos gestos que nos enchem a alma.

segunda-feira, agosto 09, 2010

Figos

"Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos"

E no chão, percebo que não é este figo apodrecido que quero ser.

quarta-feira, agosto 04, 2010

Gelatina

Há alturas em que apetece solidificar tal qual gelatina e ficar parada. Sem tremer. Simplesmente a observar a vida. Até ganhar fôlego para conseguir deixar a colher entrar e abrir-me o interior. Para nunca mais fechar.

terça-feira, agosto 03, 2010

Comida de hospital (emocional)

Faço arroz branco para suavizar os estomagos mais doridos. Grelhados e saladas para aqueles que estão em risco de o ficar. Corto fruta fresca aos bocados e ofereço-a para que os sorrisos que me rodeiam continuem saudáveis. Fervo água para chás quentes que acalmam invariavelmente digestões difíceis. Ponho amor em todas estas receitas. Mais uma pitada de compreensão e uma raspa de dedicação sincera. Mas quando páro e penso, chega-me à boca muda a eterna questão: e de mim, quem toma conta?

segunda-feira, agosto 02, 2010

Pão com manteiga

Ele sai da caixa escura. Ela sai do frio. Encontram-se na esquina de uma qualquer bancada de cozinha. Há muitos cheiros e sabores à volta mas ambos sentem imediatamente a presença um do outro. Ela pressente que lhe poderá saltar a tampa a qualquer momento. Ele abre-se, sem pensar, deixando o miolo à mostra. Ela derrete. Ele deixa-se barrar. Sentem a leveza da forma como deslizam nos seus componentes mais íntimos. E também a intensidade calórica que lhes faz mais mal do que bem. Mas quando querem voltar atrás percebem que estão demasiado entranhados um no outro. Há atracções assim. Como o pão com manteiga.

segunda-feira, julho 26, 2010

Açorda de alhada

Quantas vezes teremos nós de desfazer a nossa côdea mais rija em agua fresca, para resolver as alhadas que os outros insistem em pôr ao lume… mesmo sabendo que serão indigestas no fim?
Entre soluções de coentros picados à pressão e temperos com sal a mais, não recuo. Visto o avental que não é o meu, abro o tacho, vejo que sabor positivo ainda consigo dar às alhadas e componho o prato final sem que ninguém dê conta. Como sempre.

sexta-feira, julho 23, 2010

Alteração no menu

Mudei de cozinha. Troquei o vazio de uma mesa cheia pela imensidão do calor de um tabuleiro solitário. Virei mais doze páginas do meu calendário pessoal. Abri a porta. Por tudo isto, decido cozinhar para uma pessoa especial: eu.

sexta-feira, julho 16, 2010

Tapas

Desligo o fogão. Tiro o avental. Solto, finalmente, o cabelo. Chegou o descanso. Num fim-de-semana que promete abusos e partilhas gastronómicas, tudo começa assim. Entre tapas.

quinta-feira, julho 15, 2010

Meloa com presunto

Nunca tinha achado que elas tivessem dimensão suficiente para encher a barriga a alguém. Poderiam talvez ser uma saborosa entrada, mas nunca um prato principal. Até que lhe abri a porta da minha cozinha e o deixei sentar na minha mesa.
"Adoro-as". Com aquele sorriso cru, pesou-as com a mão e repetiu: "Adora-as". Por cada talhada de meloa que ele sofregamente cortava, eu respondia com incursões às fatias de presunto ainda mal curado de outras refeições pesadas... Por vezes surpreendemo-nos com os sabores mais simples que se tornam em verdadeiros pratos gourmet. Um em cima do outro, nunca a meloa com presunto soube tão bem.

domingo, julho 11, 2010

Sumo de limão

Mesmo um limão de aparência mole pode ser azedo. Muitas vezes só o descobrimos quando o levamos ao espremedor da vida. Sentimo-lo a escorrer, tocando-nos na ponta dos dedos. Quando nos faz arder a pele inesperadamente, é sinal que não é bom para o sumo que gostamos de ter por opção na nossa mesa. O que sobrou dele vai para o frigorífico, onde as temperaturas frias tornarão mais fácil o contacto diário. Pelo menos na minha cozinha é assim. Deixei de me cansar com azedumes.

sábado, julho 10, 2010

Sopa de letras

De uma maneira ou de outra, fazer o caldo quase todos sabem. Mas escolher as letras certas para sopas que marcam despedidas nem todos conseguem. Há pessoas que devemos deixar ir. Mesmo que seja por um dia, uma semana, um mês, um ano ou, quem sabe, uma vida.
Não gosto da palavra adeus. Opto por um "até já" quando sei(!) que vou ter saudades. E se até isso me custar a dizer, substituo quaisquer letras por um sorriso sincero. O mesmo que estará cá no dia do regresso.


PS - É com orgulho que cozinho este post.

quinta-feira, julho 01, 2010

Pêssego sem calda

Fazer uma sobremesa de pêssego pode ter muito que se lhe diga. É fácil empanturrarmo-nos com aquele em calda, mais acessível, com lata… bem à espera de ser comido. Mas, invariavelmente, na minha cozinha prefere-se uma escolha que inclua trabalhosas idas ao pomar, em busca do fruto mais genuíno. Por vezes em encantamentos rápidos, outras em verdadeiras doses de intensa gula emocional.
Mas o pêssego troca-nos as voltas quase sempre. Podemos sentir a ternura do seu lado mais macio, descascar-lhe essa pele aos poucos e ter uma verdadeira noção do seu aroma. Podemos sentir o seu sumo a escorrer-nos pela boca vezes sem fim, parti-lo em pedacinhos pequenos para descobrir todas as nuances da sua cor. Ele dá-se às nossas mãos. À nossa faca, que descasca as suas verdades eternamente escondidas do resto do pomar. Mas o que é certo é que podemos passar 100 dias a cozinhá-lo, 100 noites a come-lo, e na realidade nunca chegamos a conhecer o sabor do interior do seu caroço. Não sei se vai ser sempre assim, mas eu continuo a vaguear no pomar com o mesmo encantamento... e sem pressa.


domingo, junho 27, 2010

Sandes de salpicão

A fome pode aparecer quando menos esperamos. E quando sentimos a urgência de comer, estar ou não estar nas quatro paredes da cozinha passa para segundo plano. O que interessa é tapar o buraco. É nestas alturas que ceder à tentação de uma sandes rápida pode ser uma boa solução-
Abre-se o pão com a mão até se sentir o miolo a dar de si entre os dedos. Não se perde tempo a barrar manteiga. Sente-se o estômago a falar mais alto. A saliva, essa começa a acumular-se na boca. Arranca-se o salpicão da embalagem. Sem qualquer toque gourmet enfia-se dentro da carcaça. Com pele. Os sabores da carne sabem melhor assim em bruto.
Sem perder tempo a pensar se é o sítio certo ou não para matar a fome, devora-se a sandes. Com pressa, com urgência de a sentir em cada gota daquela saliva que anunciara a gula. Caem migalhas, faz-se demasiado barulho a mastigar... mas ninguém se preocupa. Porque no fim, sacudida a roupa e limpa a boca de qualquer vestígio de pão ou enchido, só mesmo o sorriso de quem se sente saciado poderá denunciar aquela refeição.

terça-feira, junho 22, 2010

Farinha Branca de Neve

A farinha Branca de Neve faz parte dos pratos mais insuspeitos de sempre. Não é preciso muita. Mas entranha-se. Faz incorporar os restantes ingredientes, dando-lhes uma consistência aparentemente forte mas que se desfaz quando, ao fim de umas horas, as fatias começam a ser cortadas pelo cansaço. Seja como for, ninguém pode dedicar uma vida à culinária da vida sem a usar uma vez que seja nos seus petiscos mais arriscados.
Entre os sabores da verdade mais apurados pela Branca de Neve, partilham-se visões gastronómicas que nos deixam a boca seca. Numa rapidez desconhecida na cozinha, revejo-me em cada um dos olhares na minha mesa. São como migalhas: juntas tornam a minha fatia de bolo mais consistente. E sem qualquer recheio dizem-me que só eu é que ainda não percebi que há muito que deixei de ser isto para me tornar num dos sabores que eu julgava secreto no meu menu. Este:


sexta-feira, junho 18, 2010


"For what it's worth: it's never too late or too early to be whoever you want to be. There's no time limit, stop whenever you want. You can change or stay the same, there are no rules to this thing. We can make the best or the worst of it. I hope you make the best of it. And I hope you see things that startle you. I hope you feel things you never felt before. I hope you meet people with a different point of view. I hope you live a life you're proud of. If you find that you're not, I hope you have the strength to start all over again".

quarta-feira, junho 16, 2010

Cabernet Sauvignon

“O teu corpo diz-me uma coisa. A forma como falas diz outra”

Não foi a primeira vez que, na sua consistência encorpada e de coloração intensa – tantas vezes apurada em tons de frutos vermelhos –, o Cabernet Sauvignon foi levado à boca com esta dúvida pelo meio. Entre períodos passados em cubas do mais frio inox e envelhecido por cascos de carvalho que lhe esgotam a sua textura natural, também já perdeu a noção de que idade realmente terá. Quando o tentam conhecer a fundo, há quem diga que tem um aroma complexo. Sem saber se isso é bom ou mau, ele acha que é apenas um vinho simples. Sem idade.

segunda-feira, junho 14, 2010

Chá de menta

Quente, mas fresco no sabor. Adoro (est)as contradições na culinária da vida… mas isso já todos sabem.
O segredo do chá de menta é deitar uma primeira vez no copo e voltar a pô-lo dentro do bule. À segunda vez sabe sempre melhor, dizem eles. Talvez por isso tenha voltado.
Ligo o lume. Ponho ansiosamente o bule com a menta na chama, desejosa de começar a ouvir a água a fervilhar lá dentro. Bum, brum, bum, bruum, buuum… tal como um coração descompassado, assim ferve Marrakech nos meus ouvidos. Fecho os olhos como da primeira vez. Sinto-lhe o inconfundível cheiro. Junto-lhe um disforme cubo do açúcar mais doce, do tamanho dos braços que se abrem para me receber. Sorrio àquele tom escuro a que me habituei sem ter dado conta. Há ingredientes que não se esquecem.
Encho o meu pequeno copo com o braço erguido, conforme a tradição. As pingas salpicam-me a pele suada enquanto oiço os risos de quem confessa prazer em ver-me entrar nos rituais marroquinos. Páro para ver as cores. Aquelas cores. As pessoas passam e eu observo-as hipnotizada. Há crianças que riem. Há outras que mendigam. Há encantadores de serpentes. Há vendedores aldrabões. Há mulheres tapadas. Há homens que discutem. Há tristeza. Há alegria. Há agitação. Há vida.
Calo-me e sinto aquela paz fresca da menta. Foi como regressar a casa.

sábado, junho 12, 2010

Prato principal

Porque há alturas em que uma cozinheira precisa de quebrar obstáculos inúteis no fogão. Alturas em que não queremos jogar entre os tachos. Alturas em que sabe bem conseguir falar e agir sem ter de pensar demasiado. Antes de vos contar os pormenores sobre a receita do chá de menta, permito-me a isto. Apenas isto:


sexta-feira, maio 28, 2010

Café com leite

Uma cozinheira, no sentido total da palavra, não deveria demonstrar resistência a novas formas de cozinhar algo que já há muito tempo faz parte do seu habitual menu. Peco neste aspecto, tenho de confessar.
Lembro-me de uma vez no meio do Laos ter visto um restaurante que vendia café com leite ao pequeno-almoço. Ao fim de três semanas sem a minha meia-de-leite, nao olhei para trás. Sentei-me. Aguardei impaciente.
Serviram-me um copo de café escuro com leite condensado no fundo. Sem conseguir esconder a decepção, pus o copo de lado. Continuava demasiado apegada ao sabor que tinha deixado para trás em Lisboa. Hoje percebo que teria sido mais sábio da minha parte ter, ao menos, tentado experimentar aquele mistura escura e doce. Porque quando menos esperamos somos surpreendidos com novas formas de saborear o que já achavamos conhecer de cor. E pode saber bem.

quarta-feira, maio 26, 2010

Degustação de memórias

Encontrei-o em Lisboa. A doçura do seu olhar e a calma das suas palavras continuavam iguais. Caminhámos pelas ruas da minha cidade e nelas senti novamente os cheiros e os sons da outra ponta do mundo. Sentámo-nos nas Portas do Sol. Passaram horas. Era o sítio perfeito para um reencontro.
Falámos sobre a vida. Sobre o passado, o presente e o futuro. Dos rostos que ambos conhecemos e daqueles que cujas apresentações ficaram ao cargo dos astros. Rimos, como fizéramos em Bali. Ouvi novamente os seus conselhos. Fiquei a pensar neles durante os minutos de silêncio mútuo nas ruas de Alfama.
Há momentos que nos trazem à boca o sabor de muitas memórias. As melhores memórias. As que ficam guardadas no coração. E com elas o rio corre, tranquilo. Mesmo que a velocidade seja muita.

quarta-feira, maio 12, 2010

Gelado de requeijão com marmelada

Há cor. Há doce. Há salgado. Há texturas que se derretem. Há frio que magoa os dentes. Há marmelada que se cola aos lábios. Há canela. Há bocas lambuzadas. Há gula. Há um fechar de olhos. Há intensidade nos sabores. Há um sorriso. Há uma dúvida sobre se vai fazer mal. Há uma língua que lambe a colher. Há um suspiro. Há um sabor a pouco. Há uma barriga cheia de muito. Gosto quando é assim. Cinco minutos de tudo.

terça-feira, maio 11, 2010

English breakfast

O ovo é frito até a gema brilhar… pronta a rebentar, na sua habitual compostura. As salsichas são atiradas para a frigideira, uma a uma. Ganham cor, mas não se perde muito tempo com elas pela manhã. Juntam-se torradas, aparadas, sem côdeas duras indesejadas. Há três tipos de doces, com texturas diferentes que me põem a boca sem amarguras. Da cafeteira topo de gama sai café, com aroma gourmet vindo de longe e de perto. Há também sumo abundante, de (muitos restos de) frutas tropicais. O pequeno-almoço é servido num tabuleiro bonito. Dizem que a vista também come. Tenho de concordar. Abro o melhor dos guardanapos de linho. Sinto-lhe o cheiro perfumado, que poderia inebriar o meu olfacto ainda tão jovem e ansioso por mais e mais. Há uma flor ao lado. Gosto. Afinal, é sempre romântico ter flores na mesa. Mas então, porque será que nada disto me entusiasma?
Levanto-me. Continuo a preferir uma meia de leite e um pão com manteiga.
Simples. (Como eu).

segunda-feira, maio 10, 2010

(...)

Quantas vezes podemos sentir-nos desiludidos na culinária da vida? Quantas vezes nos podemos surpreender a sorrir? Quantas vezes podemos acreditar em algum sabor? E quantas vezes podemos ter de assumir que, afinal, estávamos errados?
Na cozinha, resisto-lhes. Desacredito na minha capacidade de (ainda) sentir o baque do ingrediente inesperado. Como se houvesse uma total imunidade à alegria e à tristeza súbitas. Mas quando menos espero: saboreio-as. Em dose dupla. Vindas de diferentes frascos presentes na minha prateleira das especiarias diárias. Surpresas que fazem sorrir, desilusões que me tiram a vontade. Certezas transformadas em incertezas. Incertezas transformadas em certezas. Calo-me. Perguntam-me o que tenho. Calo-me. Decido desligar o fogão e não cozinhar. Pelo menos hoje. Amanhã, logo se vê.


quarta-feira, abril 28, 2010

Sorvete tentação

Está calor. Na cozinha, a ventoinha faz o seu melhor. Olho para o morango como se fosse a primeira vez. Junto-lhe o açúcar em calda que pinga das nossas caras coladas enquanto dançamos. O som da batedeira proporciona que os ingredientes do sorvete se misturem lentamente. E, sem perceber porquê, sinto (a esquecida) vontade de o levar à boca. Tentação.

terça-feira, abril 20, 2010

Toucinho do céu

Há doces que nos enchem as medidas. Que nos levam ao céu. Que nos satisfazem do início ao fim. Cujos ingredientes se misturam na perfeição. Que nos fazem fechar os olhos e suspirar. Que, quando terminamos de comer, damos um estalido com a língua e dizemos: perfeito! Há interpretações que também são assim:

sábado, abril 17, 2010

Pêra bebeda

Lava-se em água corrente, aromatiza-se com gostas de sumo de morango e polvilha-se de açúcar amarelo para que o gosto de quem a leva à boca no final seja inesquecível. Abre-se a garrafa de vinho tinto para regar a pêra. As mãos esfregam-lhe a casca de todas as suas curvas, tocando com os dedos nas rugas, imperfeições, pequenos sulcos de recheio apodrecido pelas pancadas e pelo tempo.
Descasca-se lentamente, em provocação à urgência do apito do forno que indica que a temperatura ultrapassou o limite. Num movimento preciso, tiram-lhe o caroço como quem lhe tira a alma. Sai inteiro, como tantas vezes ela saiu da fruteira, mesmo quando amolgada por fruta vizinha. Rebola no tabuleiro. Pára. Não deixa que nenhum pau de canela entre nela. Não quer que esse aroma se entranhe. Não quer ser invadida por qualquer corpo estranho à sua composição fresca.
No forno a chama, essa permanece acesa. Mas no tabuleiro a pêra mantém-se firme, sem baloiçar na sua postura arredondada. Está bebeda, mas não embrigada. A sobremesa não está à livre disposição no menu.

terça-feira, abril 13, 2010

Sobremesa de Beijinhos

Lembro-me de ter escrito sobre os bolos “beijinhos” há muito tempo. Julgo que na altura andava a praticar a receita. Hoje, pela data, lembrei-me de os voltar a pôr no menu.
São doces, disso não há dúvida. Por vezes têm recheio e a língua fica com o seu sabor durante muito tempo. Dependendo da ocasião, poderão ser pequenos ou grandes. Por vezes ficam esquecidos no fundo do armário. Mas também acontece termos esgotado a caixa e mesmo assim não ficarmos saciados. Há quem os compre, há quem os dê. Eu gosto de cozinhá-los. Sem pressas. Mesmo que o lume esteja bem alto.




(from the secret jukebox... and calendar)

quinta-feira, abril 08, 2010

Sem o saber, hoje alguém me lembrou disto. Lembrando-me que há muito que não me lembrava. Não houve sabor. Nem cheiro. Foi bom assim.

domingo, abril 04, 2010

Sal e pimenta

Salgado. Apimentado. Calma. Boémia. Dois sabores distintos de uma só refeição. Dois destinos de uma só viagem. Uma contradição gastronómica, igual à cozinheira. Em breve, vai ser assim.

quarta-feira, março 31, 2010

Temp(er)o

O tempo é uma das palavra-chave na culinária da vida. Às vezes os pratos apuram, noutras acabam queimados, noutros ficam desfeitos, noutros enrijecem sem volta a dar. Tudo por causa do tempo. A mais, a menos. Não é a primeira vez que falo nisto, mas hoje apetece-me outra vez.
Há uns tempos, um grande amigo disse-me “Paulinha, as pessoas esquecem-se frequentemente do privilégio que é ter tempo”. Tinha acabado de chegar de uma volta ao mundo, entre pratos de todas as cores e sabores. No meio de frigideiras com restos eternamente colados e pedidos que nunca terminam de chegar ao balcão da minha cozinha, oiço o tic-tac também constantemente contra mim. Ele voa, eu não o vejo passar. Não é que tenha aumentado o ritmo, apenas se mantém ano após ano. E assim ganha velocidade sobre a minha capacidade de resposta.
Aproveito o “tempo” o melhor que posso quando saio das obrigações diárias. Deixo as outras em banho-maria porque estou cansada de as ter quando não são, realmente, minhas. Conduzo à noite rumo a casa com os olhos a teimarem fechar-se a qualquer minuto sem me darem poder de escolha. Ultimamente tem-me acontecido mais do que eu desejava. Durmo 13 horas seguidas pela segunda vez na mesma semana. Estarei esgotada? O corpo revela-me que sim. Mas é cá dentro que mais o sinto.

segunda-feira, março 29, 2010

Tortilhas


Cebola às rodelas com lágrimas escondidas. Batata consistente para conseguir enfrentar um mundo que um dia desaba, mas não pára. Chouriço picante de quem quer viver tudo o que pode. Ovos que envolvem eternamente todos os ingredientes à sua volta. Depois de frita, por vezes até queimar, a tortilha alimenta muitas bocas. Que reclamam, egoistamente, a sua possível ausência.
Há um dia em que a tortilha quer ser livre. Quer voar da frigideira para um qualquer outro prato longínquo. Começa como uma fuga. Mas termina por ser um processo de cozedura emocional, em que a tortilha percebe que não há refeições insubstituíveis no menu. Quando ela não estiver, haverá mais comida. Na verdade, a fome nunca baterá à porta.
Não há uma tortilha que seja igual à outra. Mas há algumas que inevitavelmente acabam por se cruzar no prato da vida. Podem nunca mais se voltar a ver, mas vão sempre lembrar-se desse encontro. Porque têm a mesma essência. O mesmo sabor… Estas coincidências eu já deixei de tentar perceber. Mas é bom quando inesperadamente alguém surge apenas para nos compreender num olhar.

terça-feira, março 23, 2010

Pastéis de poesia

São três da manhã. Para trás ficam os sons e cheiros do Bairro Alto. E, na cozinha, continuamos a discutir os ingredientes dos pastéis da poesia. Ele, que tantas vezes não sabe ser cozinheiro, ensina-me o que melhor sabe fazer: música. Explica-me como se devem bater os ingredientes (no papel), como se deve cortar a massa em quadras ou sextilhas, como e quando se deve polvilhar com um refrão. Ensina-me a arredondar sílabas de forma perfeita. Como juntar palavras que noutra receita não fariam sentido.
Revela-me os seus pastéis secretos. A sua sensibilidade, que tantas vezes serviu de recheio aos que cantam noite adentro. Espanta-me que também ele tenha dois lados de uma só pessoa. Que consiga ser tão contraditório quanto eu nisto do coração. Desta vez não frito os pastéis. Deixo-os repousar na bancada porque o silêncio e um sorriso é (às vezes) a melhor poesia que podemos oferecer a alguém. No ouvido, ficou-me esta até adormecer:

sábado, março 20, 2010

Adoçante

Abro o pacote do adoçante. Sinto-lhe o cheiro. Toco-lhe com a língua só para ter a certeza que é mesmo doce. Deixo-o cair no café. Vejo-o a desfazer-se. O amargo ganha outro sabor. Bebo-o sem pressa, mesmo que tenha urgência dele. Sei que o adoçante é uma mentira de doce. Mesmo quando acredito que não.
Mas nem por isso deixa de saber sempre bem. Por um momento.

quarta-feira, março 17, 2010

Batata

Podemos esmurrá-la com toda a força. Cozê-la nas mais altas temperaturas. Fritá-la até estalar. Esmigalhá-la até fazer puré. Mas nunca deixa de ter um sabor especial. Mesmo quando, simplesmente, nos esquecemos de lhe dar a devida importância. Assim é a batata. E a vida também.

segunda-feira, março 15, 2010

Espinafre

É alto, esguio, frágil na aparência, mas forte por dentro... como só quem já passou agruras na horta da vida sabe ser. Tenho um amigo que é assim. Já perdi a conta aos anos, mas já lá vão muitos desde que lhe comecei a chamar espinafre.
Há vegetais que entram na nossa cozinha sem querer e que a culinária da vida se encarrega de manter no nosso caminho repetidamente, tornando-os em presenças habituais no menu. Criam-se laços, geram-se sentimentos de protecção e carinho que nem mesmo o tempero mais avinagrado consegue estragar. Talvez por isso, quando de manhã me dizem em tom grave "o 'espinafre' teve um acidente" sinto-me a desfalecer durante uma fracção de segundo que parece durar uma eternidade. Mantenho o meu ar mais sereno (como é hábito), mas só sossego a minha couve coração quando oiço uma voz de sempre garantir-me que o espinafre continua rijo, embora de molho à espera de ir à faca.
Salteio-o de palavras positivas e piadas parvas. Tenho a certeza que a força que lhe é característica (talvez para muitos desconhecida) não vai faltar. Agora, em casa, suspiro finalmente. Já não foi uma estreia nossa de sorrisos doridos entre as paredes brancas. Mas sabe sempre demasiado amargo, como se fosse a primeira vez.

domingo, março 14, 2010

Travessia de claras em castelos

Há um tempo em que temos a força toda, outras em que o braço cede e quebramos o ritmo. Não há regras: O segredo é nunca parar. Mesmo que a vontade seja muita.
Batemos os castelos para eles se desfazerem a seguir. Mas insistimos em voltar a ergue-los. Porquê? Talvez porque aqueles pequenos momentos fugazes nos fazem roçar aquilo que julgamos ser a felicidade. A memória faz o resto. Vale a pena? Ainda não percebi. Mas acredito que sim. Nem tudo tem de ser percebido.
Continuo a bater porque desisitir não faz parte das coisas que me estão permitidas. Mudo de mão. Troco o garfo por um batedor de claras. Mantenho apenas a essência da receita: uma pitada de mim. Por mais vezes que mude e escolha novas formas de chegar aos meus castelos, eu sou o único ingrediente que nunca me irá faltar. Por mais longa que seja a travessia:

"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas,
Que já tem a forma do nosso corpo,
E esquecer os nossos caminhos que
nos levam sempre aos mesmos lugares
É o tempo da travessia.
E se não ousarmos fazê-la,
Teremos ficado para sempre
À margem de nós mesmos"
(Fernando Pessoa)

quinta-feira, março 11, 2010

Aguardente velha

Estou a descer a escada do prédio e deparo-me com um homem entroncado, barba por fazer, que me mira de alto a baixo enquanto puxa uma passa no cigarro. Por trás do tamanho, vejo-lhe o brilho infantil nos olhos e a timidez disfarçada num “bom dia” em tom decidido de homem feito.
Só quando chego ao carro é que consigo chegar a uma conclusão: era o miúdo do andar de cima. O mesmo que, ano após ano, ouvi a sair para a escola aos saltos pela escada fora. Cresceu. Está um homem. Será que também eu estarei diferente aos olhos dele?
Penso nos últimos anos e percebo que voaram. Há um ritmo alucinante que se mantém na minha vida, sem que eu consiga carregar no botão pause. Como se a minha necessidade de sugar cada minuto me envolvesse num carrossel demasiado acelerado que me deixa tonta, mas nunca enjoada.
Entro na cozinha e olho para a prateleira onde guardo a aguardente. Transparente, forte, simples… cada vez mais envelhecida, mas consequentemente mais intensa. Tal como eu. Não é bom, nem mau. É. Não tem a ver com a idade, tem a ver com o que se vive. Com o tempo e a falta dele. Já um dia escrevi isto aqui na cozinha e hoje volto a sentir o mesmo: a vida não pára. E eu também não.

domingo, março 07, 2010

Caramelo

Basta pensar que é feito a partir de açúcar e pouco mais. Já a consistência, essa será sempre dura. Mas mesmo assim, doce. O pior do caramelo é que custa a sair dos dentes. Mesmo depois da digestão estar definitivamente feita. Sei que podia comprar um fio dental mais eficiente mas não quero. Por mais contraditório que possa parecer, gosto dos vários restos dispersos que, ao longo dos anos, vão ficando eternamente presos na minha boca. Já não são eles que me alimentam, mas sabem-me bem. Não tenho jeito para guardar gostos azedos, é uma verdade. Ainda bem.

sexta-feira, março 05, 2010

Tempero recuperado

"There is nothing like returning to a place that remains unchanged to find the ways in which you yourself have altered" (by Nelson Mandela)

Tenho a sorte de ter sempre onde recuperar o tempero. Onde me perco e encontro. Onde volto sempre para depois partir, sem nunca chegar a ir embora. Não me falha o sorriso sincero. O olhar duro quando sei que optei por abusos gastronómicos. As palavras... as eternas palavras que voam entre sonhos e angústias, partilhadas tantas vezes em sussurros ou gargalhadas estridentes. Às vezes, no silêncio.
Há um refúgio em forma de galheteiro (que se multiplica em vários) onde posso voltar vezes sem conta e restabelecer os sabores em falta no meu menu. Onde descubro o que mudou em mim. E o que nunca há-de mudar. Tenho sorte pelo abraço. Mesmo eternamente tão diferentes na nossa essência, ele é dado com sentimento igual. O da amizade genuina. Tenho sorte, tenho mesmo.

segunda-feira, fevereiro 22, 2010

Maçã

Ele olha para ela de soslaio e convida-a a sair da fruteira. A mão agarra-a. A pele dos seus dedos toca nela pela primeira vez. Balança-a ora para a esquerda, ora para a direita, até decidir por que lado começar.
Aproxima-a da sua cara. Ela sente a barba rija do queixo dele ao de leve. Ele dá-lhe uma primeira dentada. Tímida. Calma. Como se estivesse só a tentar perceber o seu sabor. Segue-se outra mais forte. Com ritmo, mas elegância. Mais uma. E ainda outra. Os dentes enterram-se com força e deslizam devagar… até tocarem uns nos outros novamente. E recomeça outra vez.
O sumo desliza pela boca dele. Ela sente-se cada vez mais possuída. Como se cada dentada que sofre a fizesse perder a noção do tempo e do espaço. Deixa de ser verde ou vermelha, reineta ou bravo esmolfe. É apenas uma maçã. Apaixonada por aquele acto de entrega mútua. Com sabor a proibido.

quinta-feira, fevereiro 11, 2010

Nouvelle cuisine

Sal ou açúcar? Azeite ou vinagre? Frito ou cozido? Experimentemos os sabores opostos no mesmo prato. A nouvelle cuisine foi feita para isso.

quinta-feira, fevereiro 04, 2010

Pipocas doces

Qual é o momento em que uma pipoca deixa de saltar dentro do tacho para se transformar em apenas mais uma do monte impávido e desiludido com a vida? Quando é que, mesmo carregada de açúcar, deixa de ser doce para atingir um sabor salgado e amargo? Quando é perdemos irremediavelmente a inocência... e com ela parte da alegria mais genuina de todas? Carrego no play e sou surpreendida por esta foto. Durante um minuto e 58 segundos sustenho a respiração. Sinto o coração a bater acelerado. Os olhos inundam-se de uma profunda ansiedade. Quero acreditar que, lá bem no fundo, ainda há em mim parte desta menina que salta. De cabeça erguida. Sem vergonha de ser a única. Mesmo que a preto e branco.

quinta-feira, janeiro 28, 2010

Raivas

Desligo a música. A receita exige silêncio.
Abro um círculo no meio da farinha fina, como uma vala comum para todos os ingredientes desta sobremesa. Atiro-os com fúria: restos de manteiga derretida, de ovos moles e de açúcar em tons de amarelo. Caem salpicos no chão. Não quero saber.
Arregaço as mangas, respiro fundo e começo a misturar tudo. Primeiro devagar, como se ainda tivesse dúvidas. Depois com força, que se transforma numa violência desconhecida. Agarro a massa à mão cheia e vejo-a a escorrer-me entre os dedos. Puxo. Estico. Esmurro. Sinto os braços doer. O suor surge-me na testa, mas já não quero parar. Agrido aquele bolo cru como se limpasse a alma. Será?
Paro. Olho para aquela raiva gigante, que nunca poderia ficar bem cozida, e decido ser prática. Divido a massa em tiras finas, fazendo um pequeno rolinho com cada uma das recordações que tenciono levar ao lume. Pior: entrelaço-as, para que nenhuma esqueça o gosto amargo da outra. Este esforço minucioso cansa-me. Sinto-me tão cansada. Distribuo as raivas num tabuleiro negro e levo-as ao forno, em temperatura máxima. Hão-de endurecer.
Enquanto os meus olhos secos olham pela janela, por momentos penso que afinal as raivas não fazem sentido numa cozinha como a minha. Não, outra vez. Sinto a ânsia no peito e procuro alguma cobertura milagrosa que as componha no fim da cozedura. Reviro as prateleiras mas não consigo encontrar qualquer réstia de chocolate para derreter. O frasco do mel rola, vazio, pela bancada. Em desespero agarro no pote do açúcar para polvilhar. O cansaço faz com que as mãos tremam e deixo-o cair. Parte-se em mil cacos. No ar desvanece-se a poeira doce, para não mais voltar. Baixo os olhos e desisto.
Apita o alarme do forno e lá estão elas: raivas duras, triunfantes. Ponho as mãos na anca sem saber o que fazer. Não gosto deste tipo de sobremesas no meu menu. Atiro-as para dentro de um saco. Fecho-o. Dou um nó. Outro. Atiro-as para o armário mais alto de todos, onde dificilmente conseguirei chegar. Mas sabendo que consigo, se assim quiser.
Aproximo-me do forno mas o calor já desapareceu. Sento-me no chão de pedra gelada e apercebo-me de como a cozinha ficou fria. Simplesmente fria.
Nem o calor das raivas sobrou.

sexta-feira, janeiro 15, 2010

Palavras gourmet

Enquanto tento atirar para o lixo todos os frascos de um desânimo que de repente se instalou nos armários mais inacessíveis da minha cozinha, tropeço num texto que me faz parar e pensar. Poderia ter pouco de gastronómico... mas o que é o amor senão um grande cozinhado cuja receita nunca será totalmente desvendada? Não sei se sou ingénua por acreditar nisto do coração, mas o meu sincero aplauso a estas palavras gourmet.

Elogio ao amor

“Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la. Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível. A culpa é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo.

O que quero é fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.

Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em “diálogo”. O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam “praticamente” apaixonadas.

Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do “tá bem, tudo bem”, tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?

O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida,o nosso “dá lá um jeitinho sentimental”. Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar.

O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A “vidinha” é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende.

O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha – é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a Vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também.”

Miguel Esteves Cardoso

terça-feira, janeiro 12, 2010

Carne no forno

Varre-se com o braço tudo o que não interessa: em dias em que não há tempo a perder, a bancada da cozinha precisa de espaço para o tempero. Abre-se uma garrafa de vinho branco para ajudar a carne a ficar mais tenra. Descasca-se o alho sem qualquer delicadeza… seja como for, ele terminará em pasta. Atira-se a carne para cima da bancada. Sente-se o seu cheiro cru. Desta vez esquece-se qualquer manteiga derretida e esfrega-se com pimenta. Junta-se um inevitável fio de azeite pouco virgem para que as mãos deslizem melhor. Dum lado, do outro, até que a carne ganhe cor.
Salteia-se com malaguetas picadas e gengibre esmagado sem dó, contra a parede. Está frio e as janelas da cozinha embaciam. Talvez tenham sido sabores picantes a mais, mas o gosto é inconfundível. A mistura de cheiros faz com os olhos se fechem e a boca fique seca. A cabeça anda à roda, inundada pela intensidade do prazer anunciado de que o fim está a chegar. Silêncio. Ouve-se, após uma eternidade, o tic-tac do relógio da parede. No chão continuam os frascos caídos, com especiarias por abrir e recordações de outros temperos. Deixa-se marinar durante cinco minutos até recuperar o fôlego e ter força para meter o tabuleiro no forno. Está frio, mais uma vez. Mas a carne só quer ficar no quente até ouvir o apito, em sinal de que a confecção acabou. Sai sem ficar queimada. E, com o seu melhor ar, volta à mesa onde todos estão habituados a vê-la.

sexta-feira, janeiro 08, 2010

Feijão e arroz

Um negro, outro branco. As diferenças começam aqui. Mais: Um é à partida seco e solto, com medo de se apegar; O outro gosta de mostrar logo o seu melhor caldo pastoso que, porém, nunca irá voltar a dar a ninguém… a não ser apenas para provar. Contudo, são ambos portadores de uma simplicidade complexa que os torna demasiado iguais no prato da vida. E é aqui que começa a química do feijão preto e do arroz.
Lado a lado partilham o prato, sabendo que nunca poderão vir a ser cozinhados dentro do mesmo tacho. Ainda assim, o arroz não gosta quando o feijão fica frio. Mas esforça-se, com cada vez menos goma, por perceber que nem sempre a travessa consegue aquecer da mesma forma as suas composições distintas. Dentro da igualdade, são diferentes. E disso, já nenhum dos dois se esquece.
Por motivos diferentes e iguais, ambos conhecem a panela de pressão. O som do apito e a força do vapor, que queima até ao mais fundo que pode haver, nunca sairão das suas consistências. E esta ligação, de quem se queimou e mesmo assim permanece com ar intacto, poucos poderão algum dia perceber. Embora o feijão tenha receio de afogar o arroz no seu caldo negro, o arroz gosta de se deixar envolver… porque sabe que (ainda) não está na hora de perder o seu lado branco, mais imaculado.
Pela mesa passam espetos com salsichas e entremeadas, bem passadas, mal passadas, mas incapazes de entender porque o feijão e o arroz continuam a sorrir discretamente um ao outro, quando já deviam ter esgotado a sua capacidade de(se) partilharem. Embora juntos desfrutem do sabor da carne na travessa vezes sem conta, ambos sabem que não vão limitar a entrada de bananas fritas e couves mineiras no menu. A vida é um rodízio demasiado grande e nenhum quer abdicar da sua enorme variedade. Mas, onde quer que estejam, vão ser sempre o feijão e o arroz. Lado a lado. Mesmo que cozinhados em bicos distantes no fogão.

quarta-feira, janeiro 06, 2010

Açorda de satisfação

Se a um pão muito rijo juntarmos um punhado de súbita satisfação e mexermos bem... muito bem, durante umas boas horas, sem pressas, apenas com vontade, chegamos à açorda que faz a minha cozinha hoje desligar o fogão com um sorriso parvo nos lábios. Pão alentejano, nem vê-lo. Continuo a achar que a robustez e simplicidade da carcaça é o ideal nos meus pratos.
Gosto de desligar a luz da cozinha com esta sensação de satisfação. De sorrir perante a possibilidade de contar o mundo e ter uma vontade imensa de o fazer... como há muito não tinha. De perceber que as minhas palavras e atitudes ainda são verdadeiramente compreendidas por alguns. Sabe-me bem sentar-me à mesa para comer a açorda e, em vez de um jantar à partida distante, acabar a saborear sem faca e garfo o outro lado de mim. Gosto de perceber que as portas estão abertas. Agora e amanhã. De sentir no corpo o cansaço extremo e mesmo assim não conseguir dormir. De percorrer as ruas escuras da cidade sozinha. Na penumbra de quem hoje já não quer ser vista. Gosto de desligar o carro e ficar sentada uns minutos para deixar terminar a música que o meu rádio - que concluo ter vida própria - insiste em fazer-me ouvir. Como um género de coentros (congelados) no topo da açorda, de que me tinha esquecido sem sequer dar conta. Hoje foi assim:

sábado, janeiro 02, 2010

Lotes de Café

Na cozinha dela existe uma caixinha, por sua vez cheia de caixinhas... cada uma com uma aroma, um tamanho de grão, um tipo de café.Há café do Quénia, simples... tão simples. Há café do Brasil... cheio de vida, ritmo e vontade de ser ousado. Há ainda o que vem das origens árabes... ligeiramente conservador, fã da união familiar que um dia irá (tentar) encontrar. Há o café de São Tomé, com sorrisos espontâneos e calor, muito calor. Há por fim os grãos vindos das Indonésia... raros para muitos, mas uma realidade (ainda demasiado) presente na sua cozinha.
Ela entra o ano a olhar para a caixa. Sem saber muito bem se lhe apetece sorrir, cantarola alto enquanto mexe o corpo involuntariamente: “tenho dores fechadas em caixinhas, contra mim contra ti, contra láááá...”. Dores em todos os seus lotes de café. Os mesmo que lhe dão vida, dia após dia. Os mesmos que a tornam única na sua complicada maneira de ser. Chega a essa conclusão enquanto caminha com o frio a bater-lhe na cara. Muitos alguéns já lhe tinham dito isto. Naquela noite ouviu-o outra vez. Na manhã seguinte, ouviu-o outra vez. E, enquanto bebia um café, compreendeu. Finalmente compreendeu. E sorriu.