sábado, outubro 23, 2010

Empanada argentina


Não há segredos sobre a empanada: para ser boa deve ser "muy rica". Na massa quebrada estendida na bancada ao longo de quase três milhões de metros quadrados, junta-se um recheio difícil de descrever. Montanhas cortadas em pedaços irregulares, planícies de iguarias fortes, uma pitada de salinas, folclore para saltear e um pouquinho de tango escondido no meio só para fazer apurar o sabor. Juntam-se ainda doses significativas de cordialidade e um exagero de malaguetas bravas. Não há molho: a essencia da empanada é seca. Quando por fim a comi e me demorei a saborear cada um dos seus ingredientes, fiquei satisfeita.
Mas quando me perguntam porque não fiquei totalmente deliciada, a resposta é simples: porque na sua simplicidade lhe falta a alegria genuína de viver. E isso é essencial nos meus roteiros gastronómicos.

sábado, outubro 16, 2010

Pão com mel

Quando a barriga fica fria de gula a meio da noite, nada como uma ida furtiva à cozinha. Sabemos estar a pisar o risco, mas o fator caloricamente proibido faz com a saliva se forme na boca com a irracionalidade que toda a vontade irremediável de comer contém.
No maior dos silêncios, mas com a maior das urgências, tira-se o pão do saco. O pote de mel abre-se com a ajuda das mãos trémulas. O miolo do pão entranha-se no mel demoradamente. Lambem-se os lábios. Lambem-se os dedos peganhentos. Contra o armário, as dentadas são ávidas, numa corrida contra o tempo. Ninguém pode ver. Ninguém pode saber. Mas no fim não há culpas. Nem sequer palavras. Limpam-se as migalhas para não deixar vestígios. Apenas o cheiro poderia denunciar a cedência à gula.
Horas depois percebo que não havia necessidade daquela refeição secreta. Mas foi isso mesmo que a tornou tão saborosa. Digna dos melhores menus.

sexta-feira, outubro 15, 2010

Conversas na cozinha catariana (parte II)

Ele: Senhora, viaja sempre sozinha?
Eu: Muitas vezes, sim.
Ele: E não tem medo?
Eu: Já não. É algo que se aprende com o tempo.
Ele: Então e o seu marido, porque não vem consigo?
Eu: Não tenho. Em Portugal casamo-nos tarde.
Ele: (silêncio)
Eu: (silêncio)
Ele: Senhora, espero sinceramente que um dia encontre um homem à altura de todas as suas viagens.

("Também eu, Argie. Também eu", pensei sem abrir a boca). No mundo gastronómico, há pessoas que não precisam conhecer-nos há muito tempo para conseguir interpretar um suspiro ou uma meia palavra, que esconde tantas outras por trás. Há quem nos oiça sem termos de falar. Quem nos veja totalmente, sem ter olhado para nós mais do que cinco minutos. E isso sabe bem.

terça-feira, outubro 12, 2010

Conversas na cozinha catariana (parte 1)


Ele: Senhora, eu sei que nunca vou poder viajar assim pelo mundo.
Eu: Nunca se sabe. Não percas a esperança.
Ele: Já não tenho ilusões e é melhor assim. Mas gostava de lhe pedir uma coisa.
Eu: Claro, diz.
Ele: Pode enviar-me fotos das suas viagens para eu ver como realmente é o mundo fora daqui?

Há alturas em que todo o cansaço de uma viagem se dissipa para dar lugar a um aperto no peito. Por todos aqueles que já se resignaram à sua condição. Pela sorte que todos os dias descubro ter numa vida que tantas vezes já maldisse.
Viajar tem disto. Os sabores nunca mais voltam a ser iguais.

quinta-feira, outubro 07, 2010

Pastel de massa tenra

"Que carinhosa."
Quando nao temos motivos para pensar no dia de amanha, conseguimos cozinhar os piores e os melhores ingredientes de nós próprios no recheio de um pastel. E, quando menos esperamos, surpreendemo-nos a envolve-lo na massa tenra que teimamos em guardar em segredo nas gavetas mais inacessíveis da cozinha.