quinta-feira, março 11, 2010

Aguardente velha

Estou a descer a escada do prédio e deparo-me com um homem entroncado, barba por fazer, que me mira de alto a baixo enquanto puxa uma passa no cigarro. Por trás do tamanho, vejo-lhe o brilho infantil nos olhos e a timidez disfarçada num “bom dia” em tom decidido de homem feito.
Só quando chego ao carro é que consigo chegar a uma conclusão: era o miúdo do andar de cima. O mesmo que, ano após ano, ouvi a sair para a escola aos saltos pela escada fora. Cresceu. Está um homem. Será que também eu estarei diferente aos olhos dele?
Penso nos últimos anos e percebo que voaram. Há um ritmo alucinante que se mantém na minha vida, sem que eu consiga carregar no botão pause. Como se a minha necessidade de sugar cada minuto me envolvesse num carrossel demasiado acelerado que me deixa tonta, mas nunca enjoada.
Entro na cozinha e olho para a prateleira onde guardo a aguardente. Transparente, forte, simples… cada vez mais envelhecida, mas consequentemente mais intensa. Tal como eu. Não é bom, nem mau. É. Não tem a ver com a idade, tem a ver com o que se vive. Com o tempo e a falta dele. Já um dia escrevi isto aqui na cozinha e hoje volto a sentir o mesmo: a vida não pára. E eu também não.

2 comentários:

José Pimentel disse...

“...cada vez mais envelhecida, mas consequentemente mais intensa.”
Tens razão, não tem a ver com a idade, mas sim com o que se vive, com o que se sente, com o que se partilha.(já em tempos falamos disto)
E a tua partilha cada vez é mais intensa.....
:-)

Chef Cosme disse...

Ela é ou não intensa, dependendo de quem a degusta. O que para ti pode ser um sabor forte, para outros pode ser uma banalidade gastronómica. O fantástico da culinária é isto mesmo... cada um saboreia-a à sua maneira. Cruzo os braços em frente ao fogão e não consigo deixar de questionar quais serão os ingredientes que trazem cá...